Pequenas opiniões sobre quase tudo que servirão para quase nada
Quinta-feira, 27 de Julho de 2017
suão

poço.jpg

 

A águia voava em círculo, como é costume as águias voarem.

O calor era imenso. O rosto transpirado estava coberto por um lenço e o pó que se levantava da ceifa do trigo, que o trator despejava pelo campo, em molhos atados para servirem de pasto aos animais, colava-se nos olhos, nas pestanas, nos cabelos, na pele por debaixo das calças e da camisa.

Manuel queria beber uma cerveja.

Este “trigo” era apenas uma palha. Uma erva seca que salpicava poeira, mais feno e pó do que alimento.

A hora do maior calor já havia passado, mas ainda se fazia sentir com intensidade e já eram quase nove horas.

Que vida, que desgraça a sua, ter nascido nesta terra.

Ou não!

Manuel não se queixava. Tinha, apenas, uma certeza, pertencia ali!

Que graça e bênção ali ter nascido, amando os campos e a inclemência do clima.

Frio e chuva de inverno. Calor, muito calor de verão.

As vinhas estavam em fase de “quase prontas” para a vindima. Os bagos ganhavam cor.

Aqui nada parava, nem se detinha. A seguir a uma safra, outra logo começava.

Tudo nestes campos era abundância…de azeitona, de vinho, de gado.

Uma geladinha vinha mesmo a tempo de uma conversa na taberna local. Por isso Manuel deu por terminada a jorna e dirigiu-se com o trator para a estrada, descendo por um declive e, depois, saltitando por entre os sobreiros e as azinheiras.

Desceu do alto da maquina, sacudindo as praganas e as cinzas que se agarravam á camisa.

Tinha as mãos sujas, as unhas negras e as botas velhas precisavam de ser substituídas.

A taberna estava cheia de trabalhadores, como ele, que só agora largavam as ferramentas e procuravam a alegria de uma troca de opiniões, bebendo, bebendo, sempre muito. Já se sabe!

- Esta pago eu!

- Só mais uma para me ir embora.

Lavou as mãos, limpando a cara com a água fresca de uma torneira alimentada por uma mangueira solta, em zigue zag por entre as mesas de tábuas.

Chegava mais um grupo de apanha do pinhão, numa camioneta, sem taipais.

O taberneiro afinava uma gaita e a um canto, havia um tocador de acordéon.

Manuel maldisse a vida, como sempre fazia em desabafo. Sorriu ao lembrar-se que a sua enxerga de madeira, lhe sentiria já a saudade, pela falta, e a sua cadela preferida “zona” esperava, abanando a cauda ao portão.

Pediu uns torresmos e picou, como fazem os que estão além fronteira.

- Só mais uma para a despedida.

Bebeu de um trago e pediu outra.

Ficou na mesa, por muito tempo.

À volta o burburinho serenou.

*

Depois o céu tornou-se escuro.

Uma luz contornou a ribeira e mostrou faróis na estrada.

Um javali correu assustado, cruzando as herdades.

E o tempo desapareceu no remoinho de um abraço que a mulher lhe deu, nas voltas da cama, e no morno calor da noite, quando a madrugada já gritava, serem horas …

 

 

 



carlos arinto maremoto às 18:40
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Terça-feira, 11 de Julho de 2017
Projecto

teia.jpg

O homem acercou-se do balcão do hotel, e perguntou se podia alugar um quarto com a planta que transportava.

De facto, o recepcionista confirmou, o homem trazia na mão esquerda um vaso com uma planta.

Era uma planta bonita, não saberia o recepcionista classifica-la, como fazem os botânicos, apenas dizer que era verde, sem flores e saudável, ao que tudo indica pelo aspecto e viciosidade das folhas.

Estava colocada num vaso, que um papel de seda colorido envolvia. Nem grande, nem pequena, uma planta que se transporta com facilidade. O papel tinha duas asas, por onde o homem segurava a planta e o vaso onde esta estaria assente, já se vê, que as plantas não andam sozinhas sem estarem agarradas a nada.

- Com certeza, respondeu. Agradeço a identificação para preenchermos a fichazinha.

O homem engolio em seco. Identificação?

Parecia nervoso.

- A planta não possui identificação.

- Não! Não! Claro – disse o homem da recepção sorrindo. A do senhor, de vossa excelência, quero dizer, por favor.

- Ah! Claro, desculpe. Que disparate!

Colocou o vaso com a planta em cima do balcão e puxando da carteira ofereceu ao empregado o seu cartão com os dados pessoais que este transcreveu para uma folha de papel, pedindo no final o favor de uma assinatura.

- Aqui o cartãozinho do crédito, por favor…visa, multibanco, american express?

- Então não há nenhum problema com a plantazinha? Inquiriu ainda a medo.

- Não nenhum! Obrigado. Tenha uma boa estadia.

- Quer que pague antecipadamente o serviço?

- Não há necessidade, quando sair logo trataremos desse assunto.

- É que sabe a plantazinha….

Não acabou a frase e pareceu ter-se arrependido do que ia dizer, fechando a boca e olhando em volta para constatar que estava sozinho sem ouvidos estranhos a delatarem o sucedido, sabe-se lá onde e para quem.

O homem com a planta não possuía nenhuma mala. Pelo menos que se visse. Podia tê-la deixado no carro e ir busca-la mais tarde.

Bem, não era da sua conta, pensou o funcionário por de trás do balcão, nas suas funções oficiais de assegurar o trato administrativo do hotel.

O homem, agora cliente, pegou na planta e seguiu em direcção aos elevadores, que eram dois.

Deu primazia ao da esquerda e á sua planta, na passagem da porta e, com cuidado, assegurou-se de que esta estava confortável no vaso que a sustentava, antes de carregar no botão que indicava o andar do quarto.

Depois carregou no fechar das portas, não porque fosse necessário, mas porque era assim que via fazer, mas…

Num ápice, qual repente, segurou a porta e regressou á recepção. A planta baloiçou, mas não caiu e sem mais explicações recolheu a chave que havia esquecido em cima do balcão e que o funcionário que o atendera já trazia na mão, a meio caminho

As chaves dos hotéis são um mero cartão magnético. Perdem-se com facilidade. Esquecem-se com ligueireza.

Ambos sorriram, embaraçados.

- Obrigado!

O recepcionista por não ter notado que o cliente se havia esquecido da chave no balcão, o cliente pelo descuido sem nexo. Sem chave não poderia entrar no quarto, era elementar!

A planta tirava-o do sério. Distraia-o.

Era a sua planta de companhia.

Tinha apanhado um resfriado, na semana antecedente, por causa da janela aberta para que o ar sacudisse as folhas da planta, como a natureza manda,  mas agora estava bom e tinha sido por isso que resolvera aproveitar para tirar uns dias de férias e de descanso.

Nem todos os hotéis aceitam plantas de companhia, por isso fizera questão em esclarecer a situação antes de tudo o mais, não fosse o recepcionista pensar que se tratava de uma prostituta ou de uma qualquer encontrada na rua e levada para o quarto sem mais aquelas.

Era uma planta sossegada, que não saltava do vaso para ir cuscar aqui ou ali, nem enrodilhar-se nos tapetes, junto á cama.

Conversava com serenidade, crescia com confiança e alimentava-se com água, adubo e minerais a horas certas, pelas suas raízes e folhas, sem precisar de ajuda. Bastava que o seu dono não se esquece-se de lhe renovar a dispensa, que o mesmo é dizer regar a terra, borrifar as folhas e juntar um bocadinho – só um bocadinho – de estrume bem curtido ou de suplemento de supermercado.

Precisava de luz e de sombra, como todos os seres vivos. Nem muita nem pouca, a equilibrada, que as plantas não são de saírem por aí em busca de praia ou de montanha, como qualquer turista.

Tinha a vantagem de se poder deslocar, no vaso, sem estar agarrada ao chão, e portanto imóvel, o que lhe conferia uma característica de turista e de viajante.

Sim, a planta gostava de apreciar tudo á sua volta, mudando de interior para exterior, de quente para frio, de inverno para verão, sem estar sujeita ao ciclo das estações.

Detestava que a acordassem a meio da noite, quando vegetava na ansia de captar algum orvalho fresco, logo que a madrugada aparecia. Quando isso acontecia, entortava as folhas e fazia-se de caduca, chagava mesmo a transpirar um doce veneno que fazia alergia a quem ousasse tocar-lhe.

Era uma planta de companhia que ouvia, sem se pronunciar, os desabafos do seu guardião. Este, era, pessoa erudita e educada, nunca reivindicara ser o dono da plantinha, quase arbusto, trepadeira, folhosa, árvore se a deixassem crescer e a oportunidade surgisse.

- Espera aqui, vou tomar um banho, disse para a planta com afeto.

Não porque pensasse que a planta o seguisse até aos lavabos, mas por uso e costume com os outros seres vivos. E para estabelecer conversa.

Ouvir a água a correr soube bem á plantinha.

Desde que não fosse enxurrada, a água era uma bênção. Já o fogo era praga e causava males que demoravam anos a reparar. Por vezes forçando a evolução, pois cada planta renascia modificada e alterada, mais adaptada, resistente, mas também diferente.

O ciclo da vida das plantas é universal e eterno.

Talvez dos outros seres também o fosse, a planta não sabia e não tinha como perguntar.

Havia quem jurasse que as plantas possuem alma, e conseguiam falar e dialogar entre elas. Havia plantas que conheciam todas as espécies e as formas existentes, da sua espécie, desde sempre e em muitas formas de comunicação.

Agora e nas outras vidas que tiveram antes desta, quando a Terra era muito diferente e os seres que a habitavam possuíam formas de que não temos conhecimento, as plantas – pela esperança de vida mais curta, nalguns casos, imensamente longa e duradoira, doutros -  poderiam  escrever uma “história” do mundo vegetal tão interessante como as cruzadas ou os descobrimentos.

O homem sentou-se em frente ao televisor com um livro na mão.

Era agradável estar ali sozinho com a sua planta de companhia.

O vaso com a planta havia ficado em cima de uma esteira, a meio metro do chão, junto á janela, por onde se espraiava um pouco de luz. O dia ia chegando ao fim.

- Amanhã, iremos passear pela costa, junto ás arribas. Disse o homem, falando para a planta. - - Ou preferes ficar aqui no quarto? questionou ao fim de algum tempo.

A planta não respondeu, claro! Mas era agradável ter um parceiro de conversa, mesmo que essa conversa fosse monologada.

- Vou dormir, estou com sono…disse de si para si, ou de si para a planta. Nunca saberemos.

Abriu uma fisga da janela para que o ar entrasse durante a noite e a planta abanou as suas asas, quer dizer as folhas, manifestando contentamento.

O homem adormeceu nos lençóis a cheirarem a lavandaria e a plantinha, aproveitando uma distração saiu para a noite e foi procurar outras plantas que dançavam numa trepidação frenética, ali próximo.

Que pena não haver abelhas á noite, pensou, só o sol as faz sair da colmeia.

Depois, já madrugada regressou ao vaso e adormeceu também.

- Tenho de tomar conta do homem, sem mim ele morrerá em breve. Pensou, mais do que disse, pois as plantas não falam, como já se sabe e não se vai agora querer inventar o que não tem invenção.

Sem plantas, sem verdes, sem flores de todas as cores, tamanhos e feitios o homem, seja ele este que aqui dorme ao lado da sua planta ou outro, está condenado a desaparecer. Por isso as plantas criaram uma rede de reprodução e preservação muito superior ao dos outros seres.

No espaço do vaso, na areia de terra que cobre o húmus, despontam novos rebentos.

Um espigão começa a elevar-se, onde há-de aparecer vagem e esporos. Na efervescência da vida contida num vaso, ouve-se uma sinfonia de múltiplos instrumentos, se tivéssemos ouvidos que pudessem ouvir estes sons invisíveis e não percetíveis ao comum dos humanos.

- Bom dia, bom dia! O homem acorda. Está bem disposto, pronto a iniciar o dia.

A planta agasalha-se aos pés da cama, entre as mantas, com  cuidado para não sujar com terra ou folhas mortas a cama.

O homem nem repara. Para ele é natural que a planta se mexa durante a noite.

Tudo acontece devagar e com naturalidade. O mundo está firme. A lua desapareceu e o sol começa a querer interessar-se pelo formigueiro do planeta.

Um aguaceiro fustiga os vidros, mas logo cessa.

O céu rasga-se em flor.

Nas poças que se formam, lá fora, junto ao areal e ás rochas, carreiros de formigas – pequenas, minúsculas, outras grandes com asa - mexem-se como sempre fizeram, há milhões de anos, recolhendo alimentos.

Todo o passaredo está agitado.

Desde que tem a planta de companhia o homem deixou de tomar os comprimidos. Agora é outro. Um guardião! Um soldado!

Não se poderá dizer se é o homem que guarda a planta, se a planta que guarda o homem, nem isso pode ser importante.

O fim não tem fim. Isso foi antes. Porque antes do agora foi o antes que por ser “antes” acabou.

A planta olha o homem a vestir-se e a abrir a porta do quarto para sair.

- Vamos? Diz para a planta

Esta sorri e caminha á frente do homem, impetuosa, querendo descobrir o mundo.

No hotel ninguém repara em nada, em qualquer coisa que possa ser estranho, ou inusitado. Para ver é preciso aprender, saber e estar preparado.

Tudo o que os outros hóspedes observam é um homem, baixo, atarracado, com barriga a segurar uma planta que se dirige para a porta da saída.

Se perguntássemos ás testemunhas: levava a planta na mão esquerda ou na direita? Tem a certeza de que era uma planta? De que cor era a planta? Não saberiam responder, respondendo com a delirante imaginação, cada um a seu modo e todos de maneira diferente, como sabemos que acontece.

Vemos o que imaginamos, ou o que queremos, muitas vezes não vemos a realidade.

Homem e planta vão lá ao fundo, já quase não se vislumbram daqui, que ficamos parados á porta do hotel absortos nas reflexões que acabamos de escrever

Diríamos que os perdemos de vista.

Por isso, para não cansar o leitor com coisa nenhuma, dizemos que o conto acabou.

 



carlos arinto maremoto às 11:41
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Com a barba (des)feita

 

Com a barba por fazer

 

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carlos arinto maremoto às 07:12
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Segunda-feira, 10 de Julho de 2017
A flor do cacto

flor.jpg

 

 

Sesinando, que era nome de outras épocas, levou as mãos ao peito ao consultar o saldo da conta bancária, num dos muitos postos de atendimento informático espalhados pela cidade.

O dinheiro tinha desaparecido.

O saldo era zero.

Com a cabeça á roda, não soube o que fazer. Engano! Tinha de haver um engano!

Ele que era tão cuidadoso com tudo, era enganado como o mais ingénuo dos mortais.

Sesinando – para que se perceba a sua pessoa – não tinha “conta” no facebook. Não pagava nada com cartão de crédito para não ser controlado pelas finanças, pedia factura sempre com o número de contribuinte para ser ressarcido do que houvesse a maximizar e a colectar.

Quando usava o telemóvel (sempre com o localizador desligado) dizia estar onde não estava.

Detestava a vigilância nos “centro comerciais” e se ouvia barulho ou pressentia risquinhos no ecrã, em qualquer comunicação de voz ou dados, desligava, pois estava a ser escutado.

- Eles andam aí! Era o seu lema!

Outros achavam que tinha a mania da perseguição.

Mas Sesinando estava certo.

Desde que recusara um pequeno empréstimo a um amigo, este jurara vingança.

Claro que a dimensão dessa vingança não era a que Sesinando supunha, não havia serviços secretos israelitas envolvidos, nem os russos estavam interessados na sua pessoa. Não era político, nem empresário, embora possuísse bens em desafogo pela estrada das heranças que lhe haviam chegado pelo acaso familiar, primeiro dos pais, depois de uma tia.

Não precisava de dinheiro, mas sentia uma satisfação erótica em possuir a carteira recheada de notas.

Acariciava as notas como dedilhava as moedas, das mais valiosas ás mais pequenas, em tamanho e em valor.

Depositava tudo e levantava, dez minutos depois, num balcão a quinhentos metros de distância.

O dinheiro era a sua profissão.

Se pudesse não gastar um centavo ficava contente. Se pudesse poupar dez euros exultava.

Tinha capitais para comprar e vender, sempre em nome de outros.

Não ligava ao dinheiro, mas o dinheiro e o tempo era a sua perdição.

Não “ia para fora”, não fazia férias, não ia comer a restaurantes caros. Sesinando amealhava.

Mas quando o amigo lhe pediu um empréstimo, de valor diminuto para as suas capacidades, e explicando que estava “com a corda na garganta” recusou.

Se tinha a corda na garganta, o nó podia apertar-se e ir para a terra dos sonhos e lá ficava a divida por pagar. Não há “pão para malucos”… se as lágrimas lhe vinham aos olhos porque descobrira que comprara um produto por mais dois euros do que via agora á venda, na loja do vizinho, não arriscava um empréstimo com fracas garantias.

Fracas? Nenhumas!

O amigo insistira, sim, mas amigos, amigos, negócios á parte. Sempre foi o seu lema.

Nem nas ocasiões.

Prejuízo ele nunca tinha, nem podia ter.

Só a ideia de ficar a perder o aterrorizava.

Chagava sempre depois a qualquer encontro. Ficar á espera não era consigo. Um psicólogo “amigo” (podem-se ir somando os amigos) disse-lhe que era uma forma de humilhar os outros. Nada disso, o que é que um psicólogo percebe de psicologia?

Tinha ainda a faceta de ser benemérito. Oferecia meio frasco de água de colónia, um guarda chuva, uma pintura que estava num caixote do lixo que ele resgatara porque lhe fazia pena a moldura em tão bom estado.

Sesinando não tinha mulher, pois todas as mulheres são gastadoras, como se sabe! Ele sabia.

O fato era coçado e com nódoas, os sapatos sempre iguais comprados em feira, o carro velho e sujo, com o porta bagagens repleto de inutilidades.

Mas a conta bancária desmentia  necessidades.

Um prazer que ele saboreava a sós, como a sua vida só a ele dizia respeito.

Ia a um sitio, vinha de um sitio. Ao ir e ao vir, que fazia? Uma coisa!

A sua vida era um mistério, uma disciplina uma organização um somatório de pequenos e grandes lucros. Planeava até à exaustão. Não se desviava um milímetro da sua obcessão de recoletor.

Sesinando era feliz.

Mas, não agora. As mãos começaram a transpirar, um suor escorria pela face, os sapatos apertavam-lhe o calcanhar, a circulação e as unhas…começava a sentir uma tontura.

Ah! Enganara-se no cartão.

Sim foi isso, aquela conta já não existia. Pois claro! Havia transferido tudo, na semana passada com medo do pishing. Um amigo – outro, havia muitos amigos, como um vespeiro -  havia olhado de soslaio, de forma perigosa e insinuante para o código de acesso que deixara junto a uma agenda, oferecida pelo fornecedor de medicamentos, na farmácia.

Diuréticos, apenas diuréticos e pomadas para os sinais na pele. Nada mais!

Procurou o outro cartão. Sim, ali estava.

Que susto!

O estomago ardia-lhe com a azia

Idiota, tinha de se desfazer daquele cartão sem préstimo, mas até isso lhe custava…um cartão novo, com um desenho e umas cores tão bonitas…

O dinheiro eram as suas flores, o seu namoro.

Tinha tido um jardineiro, lá no seu quintal a quem pagava principescamente, no seu dizer, o salário de um bombeiro voluntário.

Comia pão de cinco dias, porque detestava sobras mas oferecia vinho aos colaboradores aproveitando as promoções e os favores baratos. Mas o que era barato? Os seus préstimos valiam muito, os que procedessem de outra origem, quase nada.

Ele já sabia, mesmo antes de abrir a boca, tinha adivinhado, chegara lá por intuição.

Exactamente!

Sesinando era feliz, já se disse.

Não devia nada a ninguém. Todos lhe deviam a si.

Uma barrita em ouro, uns certificados do aforro estatal, umas libras inglesas. Duas casas para arrendar.

A  casa onde vivia era á prova de curiosos. Sim, podia ser roubado por um qualquer invejoso. Não que possuísse obras de arte ou cofres com fechaduras codificadas, mas porque até nos “cromos da bola” havia competição e o mundo não estava de se confiar.

E ele gostava pouco que lhe dissessem que tinha que dar, “abrir mão”, ser altruísta. Ele dava, mas se a recompensa fosse vantajosa. Ou o lucro exorbitante.

Tudo em nome da cobertura do risco.

De finanças e banca, percebia ele.

Colocou o cartão na ranhura. A máquina engoliu.

Dirija-se ao seu banco, dizia a mensagem no visor.

Sesinando caiu fulminado. O mundo enterrava-lhe a faca até ao coração sem piedade.

Quando a emergência chegou ainda respirava, mas um soluço provocou-lhe vómitos. Foi enterrado como indigente, que os filhos não quiseram saber.

Uma campa, só para si era luxo a que não se podia dar, muito menos oferecer. Flores, que é lá isso, nem uma, que não servem para comer.

Vamos “enterrar” aqui o assunto, dissera há uns dias para o amigo (outro, que amigos são todos os conhecidos e mesmo aqueles que nem se conhecem) sem saber como estava certo.

Aliás, Sesinando, nunca errara.

Se queria dizer “encerrar” e dissera “enterrar” era problema de somenos.

Fui! Escreveram na placa toponímica que no cemitério oferece as coordenadas aos turistas.

E realmente, olhando bem, não está lá nada.

 

 



carlos arinto maremoto às 11:57
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