Ficha Técnica
A Matéria da Poesia
Apresentação
José Manuel Ramos
Edgardo Xavier
Orlando Boqueirão Rolo
Carlos Arinto
Jorge Chora
Eduardo Nascimento
Maria José Figueiredo
Ana Paula Barbosa
Helena Durães
Luís Isidro Guarita
José Fernando Delgado Mendonça
Ricardo Vaz
Paulo Figueiredo
Paula Homem
Luís Teixeira Alves
Rodrigo Dias
Luís Filipe Maçarico
José Alexandre São Marcos
Posfácio
Índice
Notas
Eramos apenas jovens à procura do sonho
Fazíamos o mundo parecer pequeno face à nossa ambição
Crescemos com a ilusão da eternidade e de que eramos
Pobres, incapazes, únicos e peregrinos da ilusão
Fomos andando e fazendo, escrita, desenhos, histórias
Rodopios. Nunca mais nos encontramos.
Foste traçando heróis, bandidos, miúdas, paisagens
Sombras, luzes, arrepios, fatalismos, risos e sarcasmos
Soube que desapareceste num dia de sol. Um dia frio
Um dia como outro qualquer em que ficamos sem ti.
Amanhã, vai chover, dizem. Gostarias que sorríssemos
E nos abraçássemos no meio dos teus heróis de desenhos
E das tuas loucuras de folhas transformadas em almanaques
De bichos, de feras, de seres perfeitos e muito futuro
(alguns despedaçados pela tua vontade e raiva
Feios, maus, selvagens, cáusticos, dormentes, zeladores)
Laudas que iremos revisitar num tempo sem fim
Sempre que a água seja menina nos olhos de rapariga solteira
Cá ficamos a despedirmo-nos desejando-te saudades
Eu, o Eduardo, a Xana, o Vasco, a Rita, o Pedro….o Herminio
(lembras-te do Herminio? O Viriato…)
- Um comboio passa e tudo se encobre num apito, num rugido
Não voltaremos a viajar. Olho para as caras dos circundantes
Somos todos destino.
Nunca me diverti tanto, como daquela vez em que não fui à Disneylandia.
Devia ter doze anos.
Depois os tempos mudaram e comecei a trabalhar. Era o tempo saudável
Da boa formação, da ajuda aos pais e da criação de galinhas para consumo
Da casa. Vivíamos na lapa, vê lá tu! Na Lapa! Onde não havia capoeiras.
Depois fiz os estudos e continuei a pecar. Porque pecar é preciso.
Não quis a guerra nem a revolução. Fui ignorante, ladrão e viciado em liberdade
Fiz tudo e em tudo vivi, longe dos ódios, dos amores, paixões, revoltas e arte.
Fui embrulhado nas ondas da aprendizagem até ao infinito de nós e fui feliz!
Lavrei terras e li toda a literatura do mundo. Semeei árvores e sóis e fiz filhos
Volto a dizer-te que fui feliz.
Depois o tempo tudo levou, até a coragem em acreditar nas ilusões do ser
Mas mantive a ousadia de pecar trazendo vida, abrindo universos, criando flores
Foi tudo tão rápido que ousei pensar em morrer, por isso vivi e resisti.
Por ti, por nós, pela verdade, foi tudo saudade.
Choro pedras de amargura, mas sei que continuo a gostar de ti
Em todos os sonhos, em todos os dias, volto a nascer
Tu és todos, somos nós!
Sou o infinito e não me conformo com o céu ou o inferno, nem com a demência
Do confessor. Sou o aroma que polvilha o segredo e a fragância da natureza.
O rasto do cometa, a nuvem que não existe. O tiro certeiro na madrugada.
Estando o tempo fresco e agradável, para passear, após um dia de sol, com algum calor, achei-me junto ás muralhas do castelo, em Guimarães, onde vivo, sem dar por isso.
Estar ali, ou noutro sitio qualquer, era-me indiferente, pois caminhava sem destino, quase ignorando as casas e as pessoas que me rodeavam, ou comigo se cruzavam.
Saltei um murete, e enveredei por um carreiro, com vegetação espontânea, indo dar um uma clareira cercada por arbustos altos.
Como o sol já se tinha posto à muito e estava uma noite de lua cheia magnifica, escolhi uma rocha, que me pareceu adequada, para me sentar um pouco.
Olhando á volta, havia vários pedregulhos, com as vestes do tempo, limbos, líquen azulados e flores amarelas pequeníssimas, que apenas se distinguiam, por entre os tufos agarrados à rocha, com uma fixação prolongada do olhar.
Nem barulho, nem sinal de bichos, aves ou repteis que sempre vagueiam pelos terrenos.
Olhei para cima e o céu apresentava-se como sempre se apresenta nesta época do ano: estrelado. Nada a estranhar ou a declarar.
Porém, quando voltei a olhar em frente – primeiro distraidamente, depois apurando a visão e os sentidos, comecei a distinguir algo absurdo e estranho que me parecia real.
Um pé, dentro de uma bota, com uma sola com sulcos, por onde saía uma perna, tornozelo e canela que acabava logo acima, nada mais havendo a mostrar.
Sola com sulcos, porque a bota se encontrava levantada do chão, aí a metro e meio de altura, ligeiramente inclinada para trás, com a biqueira apontando para o lado em que me encontrava.
Para conseguir descrever a posição exacta do engenho, direi que era como se o dono do pé e da bota (logo também da perna que emergia para o corpo, que não existia) estivesse a subir uma escada, vindo de lá para cá, em direcção a mim.
Eu ia ficando por baixo, dois ou três degrau, se a subida continuasse.
Da sola da bota escorria um fio de água, sinal de que anteriormente pisara um regato e a água que se juntara nas pregas do fundo do calçado, para uma melhor aderência, deixassem agora escorrer o liquido que fruía para o chão.
Trata-se de uma escultura, pensei de imediato, embora julgasse estranho o local para semelhante exposição de arte.
De que material era feito é que parecia absurdo, não era pedra, nem madeira, ou cimento, talvez de silicone – pensei.
A água que escorria não parava, e ao fim de algum tempo a observar esta anormalidade, conclui que deveria ser uma daquelas fontes sem fim, em que a água que cai, volta a subir, para cair de novo, por um processo oculto, que engana o observador.
Também não se viam fios, ou arames a segurar a “escultura”.
Passei a mão por cima e por baixo, bem como de lado e nada impedia a minha mão de andar com liberdade ao redor do objecto.
Era uma “coisa” suspensa, escorrendo água e sem finalidade á vista, oculta de todos os olhares e que me parecia constituir alucinação, pois não lhe encontrava finalidade ou interesse maior para além de me intrigar.
Passei-lhe a mão pela textura do perímetro e pareceu-me sintético no calçado, mas de carne e osso na parte da perna que saia da mesma. Seria feita em cera?
A bota era todo-o-terreno, diria, mas parecia antiga e com uso. Estava desapertada, com cordões estragados e alguns golpes no pretenso cabedal, que se abria em ferida.
Virei-lhe costas, disposto a esquecer a sua existência.
Seria uma coisa para contar aos amigos, em noites de cavaqueira, quem sabe, regressar lá para confirmar a sua existência, amanhã, dia seguinte, com a luz do sol.
Lembrei-me que tinha a camara de fotografar comigo, fazendo parte do aparelho multiusos que agora ninguém dispensa, e que era – até à bem pouco tempo, conhecido como telefone – novíssimo canivete suíço da nossa juventude.
Disparei flashada, uma duas vezes e guardei o aparelho para ver mais tarde o que acabava de fotografar, não fosse alguém duvidar do meu encontro com o diabo.
Perdão, a bota, com pé, mas sem corpo, presa por nadas, flutuando e escorrendo água, a despropósito e num local sem significado, antes perdido, oculto e escondido dos olhares de todos.
Naquela noite não pensei mais nisso e acabei o meu passeio, no outro lado das ameias do castelo, ali, onde começou a nacionalidade e o verde das relvas bem cuidadas e das flores fazem ninho junto a estátuas e á recordação de uma senhora de seu nome Munna Dias, que não tinha ideia de ser dali, mas se apresentava como abadessa.
Soube depois que fora ela que mandara construir o castelo e o mosteiro de s. Mamede, antes de haver rei.
(continua)
Aqui o tempo é sempre igual.
Não que o tempo não corra e não nos torne velhos e malditos
Desistimos foi de o medir.
Cada coisa tem o seu tempo, menos na minha aldeia
Em que o tempo é igual para todos.
E é sempre bom o tempo, que nos viu crescer e agora recusa morrer.
(Torre da Igreja, da minha aldeia, onde o relógio parou ás 15;57 minutos e ás 03;57 minutos, talvez há mais de 10 anos. Nunca houve dinheiro para o mandar arranjar. Também não faz mal: não vive lá ninguém!)
SOPHIA A PARTURIENTE
O segurança estranhou que aquela porta estivesse encostada, mas ficou na dúvida se o trinco eletrónico havia sido acionado ou não.
Fizera o gesto automático e nem se apercebera que a porta se abrira.
Aliás, a abertura da porta não era antecedida por nenhum sinal sonoro, por isso era difícil perceber se se mantinha aberta ou fechada, a não ser, pela pressão exercida na sua superfície, no gesto habitual de abrir uma porta.
Havia um puxador e era aí que se empurrava.
Um puxador tanto serve para puxar como para empurrar, deixemo-nos de preciosismos linguísticos. Push: empurre!
Cada uma destas lojas – e eram várias, na cave do Pavilhão - guardavam um produto tecnológico de grande valor para apresentação na WebSumit que decorria em Lisboa.
Eram peças únicas, transportadas de avião, com todos os cuidados, para se exibirem numa apresentação que podia valer milhões, se os investidores acreditassem que valeriam muito mais, no futuro.
Um palco todo decorado com cubos de plástico, cercados com armaduras em cruzeta, que servem para guardar água, mas aqui são iluminados com cores, para engalanar o recinto onde os oradores vêm perorar.
Cada apresentador tem dez minutos para mostrar e elogiar o seu produto.
Por debaixo deste palco existe todo um mundo de bastidores. Escadas, quartos, lojas, espaços de lazer, serviços de montagem de equipamentos, várias cafetarias, até alguns sofás onde se pode simplesmente parar um pouco e refletir.
Um segurança, transportando um aparelho de comunicações, seguido por dois outros homens, aproximou-se do corredor lateral e, descendo por um elevador, cruzou dois outros espaços em longitudinal na cave, ficando frente a um conjunto de portas que ostentavam um pequeno numero á altura dos olhos.
As luzes piscaram, primeiro no corredor de paredes betonadas, em tons alaranjados e azuis, e, sem hesitação, passaram a umbreira da entrada, que também ela se iluminou, de um branco intenso.
Dentro das quatro paredes, três por três, não havia nada.
O segurança verificou a ordem: levantar o robot, trazendo-o para o Hotel, serviço a cargo da transportadora Oney, gabinete 35. Urgente! Hora da chegada da ordem: 18:33 eram agora 18: 50
O cumprimento da ordem estava correcto. Alguém já se devia ter antecipado.
A porta ostentava o número 35.
Ás vezes existem estas duplicações.
Fechou a porta e mandou de volta os carregadores teclando: gabinete 35 vazio, movimentação já efectuada. Hora local: 18: 55
(Enxerto inicial de um conto com oito páginas)
Não podemos esquecer que a vida é uma doença.
Andamos embrulhados em trapos por causa do frio
A comemorar Outubro
Os mortos que de guerra em guerra
Nunca são os mesmos nunca são os mesmos
Todos os terrores são afrodisíacos
E a violência justificada pela crueza da força
(ausência de razão, apenas imposição)
A amputação tornada revolução
Todas as ideologias se maravilham no holocausto
E se admiram na ignominiosa ordem
A que querem obrigar. as não ideologias
são matreiras
O amor é a armadilha perfeita
Para numa bandeira de promessas
Dizimar! Dizimar, sempre! A foice, a catana, a pedra
(Ideias, pessoas, tribos, raças, pobres
E coitados que é tudo de maldade)
Sangue, vicio, sempre mais é o Poder! O Poder de ordenar a morte!
Todos os seres que se reclamam da humanidade
São pérfidos e algozes. Carrascos e predadores.
Sinto que a tristeza não é um bem comum
Antes infecção, tumor, relógio avariado
Os assassinos rejubilam e atacam em bando
As alfaias do Poder são
Se os padres e sacerdotes da inquisição Destruição
Foram para o céu?
Sou eu que estou errado!
Se Estaline ou Mao estão felizes
Sou eu que não percebi nada
A morte desocupa.
Africa ou o continente do absoluto desprezo
Pala vida: morte executada! Funeral!
Todas as missas
E na enfermidade da vida resgatada á fome São um fim.
Existe a solidão dos que sentem e – por sofrer –
Não conseguem ser felizes.
A vida é uma doença que precisa de ser curada.
Pedem-me que aqui narre a história do homem que tinha um cão.
Recuso, pela vulgaridade.
Não encontro motivo para acreditar que o assunto possa interessar a qualquer possível leitor que um dia se depare com esta história.
Quem me ler, abandonará o livro em menos de um segundo, logo após escutar as frases iniciais.
Um homem tinha um cão. Então e depois?
O que é que o leitor tem a ver com isso, ou eu, o narrador?
Mesmo os que ao ler um livro possuem um cão aos pés, pensarão: deixa ver se o conto é longo e comprido, tenho mais coisas para fazer hoje, e – especialmente hoje – não me apetece ler histórias de cães, que sempre conviveram e seduziram os humanos como companheiros de raça.
De raça, de caça, de guarda e de companhia.
E de colaboração no trabalho, como hoje chamam aos empregados as companhias modernas.
Já se disséssemos que um cão tinha um homem, poderia causar um sorriso e alguma curiosidade, mas – estou em crer – não iria além desse sorriso o esforço para seguir adiante.
Há coisas bem mais interessantes com que nos preocuparmos.
Uma matilha! Por exemplo! Uma matilha cria-nos a necessidade de fugir, especialmente se esta arreganhar os dentes na nossa direcção.
Se não, podemos sempre enrolarmo-nos com ela (a matilha) em brincadeiras de adolescente, recordando que também já fomos pequenos e todos os bichos, animais e companheiros domésticos fazem parte do reino em que vivemos e até podem ter sido geradas pelo mesmo criador.
Um cão tem um homem ou uma mulher por adopção.
Sim, acontece, sabe-se que os cães são seres vadios que se apaixonam.
A paixão resulta sempre de uma necessidade. De afecto, de comida, de protecção, de saúde…
E talvez por essa relação, pedem-me que a descreva para que possa ser lida e não esquecida, quando houver interesse em lembrar.
Quem pede?
Ora, aqui está a pergunta que pode ter como resposta: o dono do cão.
O dono do cão é homem de muitos anos, alto, espigado, de carnes magras, com uma barba por fazer. Foi engenheiro, sendo o título académico uma marca que determina a sua estatura física, intelectual e até doméstica.
Percebe de construções, de artimanhas de factos, de emaranhados protões em complicados cálculos matemáticos, logísticos e financeiros.
Vive com a família e tem uma vida normal.
Não se inventa uma história que não existe só para encher papel.
E tem um cão.
Mas o cão morreu, como morrem todos os seres vivos, pela idade avançada. Não por doença ou acidente. Morreu porque era velho.
Feitas as exéquias o nosso engenheiro passou a andar sozinho. Nem melhor nem pior. Mas sem o cão. É natural. Um amigo não se substitui.
Sente a falta do seu companheiro de caminhada, mas que pode fazer? Sente a falta de um olhar e de uma troca de carinhos, mas que pode fazer?
Acontece que (está a ver caro leitor) aqui começa o enredo.
Antes que estranhe, dir-lhe-ei que família e cão são coisas diferentes. Por vezes os humanos confundem uma coisa com a outra, mas não é patologia que não se trate com um bom clinico da especialidade.
O engenheiro Aboim é conhecido por gostar de ir passar o verão a uma Lagoa junto á costa alentejana, que se situa junto a um parque dunar de caravanas e aconchegos de praia.
Rulotes de caravanismo, abrigos em madeira, tendas de lonas esticadas por cordame náutico.
Foi como é costume, com a família – não seja impaciente leitor, já lhe digo de quantos pessoas é constituída a família.
A família do engenheiro Aboim é constituída pelos filhos, um rapaz e uma rapariga, e a esposa.
Os filhos são menores e o carro é um suv que agora é moda e o engenheiro e a esposa têm posses e capacidades para pagar carro, impostos, combustível e oficina. Sim, eu sei que não se deve falar em dinheiro.
Isso são tiques de gente pobre. Eu sei.
Mas sai-me a escrita para o borralho, especialmente agora que escrevo, enquanto espero que umas castanhas fiquem cozidas, pois estamos no S. Martinho e tenho de colorir esta história com alguma vibração e acrescentos de pigmentação.
Sim, continuo a achar que a história de um homem e de um cão, não é história.
Não faço ideia se os filhos do senhor engenheiro gostam de cães, mas todos os miúdos gostam, portanto, tome nota, temos uma família feliz (não confundir com um prato gastronómico dos restaurantes chineses) que ficou recentemente sem o seu animal de estimação.
E já cometi um erro de que gostaria de pedir absolvição: disse que o cão tinha um dono.
Um dono?
Procuro um termo mais adequado, mas não encontro.
Os donos dos cães têm dono? Então porque é que os cães hão-de ter dono? Acasalam, juntam-se e obedecem se forem ensinados a obedecer. Convivem e relacionam-se como sempre fizeram com reis ou imperadores.
O dono de todos os cães é uma esfinge que existe no Egipto, como todos os deuses sabem.
(Pssiut…a esfinge é um leão, não um cão! Ignoro esta chamada de atenção da minha consciência)
Pois estava o nosso homem estendido ao sol, quando um cão se aproxima.
Ronda por ali. Afasta-se, volta a aproximar-se. Senta-se junto. Deixa-se ficar um tempo. Olha o engenheiro Aboim – sem saber que ele é engenheiro - os cães não sabem essas coisas – lambe-lhe a mão.
Num gesto reflexivo o engenheiro Amboim faz-lhe um afago.
Aquilo que qualquer um faria.
O cão adormece junto ao seu novo dono.
O nosso engenheiro em férias vai á procura do provável dono do cão. Um cão daqueles não anda por ali, sem dono.
Nota-se que está bem tratado. Não carece de alimento. Não está sujo.
O que fazer?
Não existe rasto do possível dono do cão. Ninguém sabe quem possa ser a pessoa – homem ou mulher – que criou este animal.
O cão já é adulto, se bem que jovem, e nas voltas que o engenheiro Aboim dá pelo parque, pelo areal, pelas caravanas e na recepção do alojamento coletivo, o cão segue-o para todo o lado.
Curioso, muito curioso, pensa.
Aboim estranha uma coisa. A raça do cão.
Cão de Gado Transmontano.
Não é uma raça comum no sul do País. É um animal grande, corpulento. Um animal de trabalho e de guarda.
Aboim conhece muito bem esta raça, pois é a mesma do seu anterior cão. Uma coincidência. Sabe que são persistentes, lutadores, resistentes, aguerridos e meigos. Meigos e cheios de doçura, como oitenta quilos de peso – na idade adulta – podem ser.
Seria possível que este cão quisesse adoptar o engenheiro Aboim, talvez pelo cheiro que as suas roupas tinham?
É possível. Tudo é possível. O estranho é não existir dono para este cão. Donde terá surgido?
Aboim informa as autoridades de que vai ficar com o cão. Não faria sentido deixar o cão ao abandono.
Se o dono aparecer será devolvido.
Um cão deste porte não se perde, não se abandona, não se desliga de um tutor.
Impossível estabelecer um rasto.
Misterioso, este cão reage com a docilidade que a raça possui. Balança a cauda, dança na rua a caminho de futura casa, enrosca-se em buracos e no chão – sempre que descobre terra ou relva - para mostrar que está contente e confortável.
Amboim sente-se repousado e tranquilo.
Perdeu um cão ganhou um cão.
A vida agora é a mesma.
Quinze dias foi o tempo que o seu cão foi e voltou ao reino mágico dos cães, não aguentando a saudade.
Também tive uma gata que….
Chega. Não conto mais!
Procuro poetas na frutaria do meu bairro.
Sim, porque os poetas devem ter o sabor da fruta
E o cheiro das coisas naturais, belas e perenes.
Procuro poetas na florista do meu bairro.
Pensando que os poetas devem ter as cores de todas as flores
O perfume de todas as pétalas e a liberdade fresca e delicada
De todas os matizes que a natureza oferece com espontaneidade.
Procuro poetas por entre os operários que saem da construção
Ou da fábrica de montagens ou da oficina do artesão
Porque os poetas podem estar em todo o lado e são gente
E são anónimos disfarçados de profissão emprestada.
Procuro poetas nas livrarias, onde me dizem que estão
Mas não encontro poetas por entre as páginas de livros arrumados
Nem ao balcão ou nas estantes despenteadas por visitantes cansados
Não! Não os encontro lá. Nem os vejo na rua que cruzo e descruzo
Passando, andando, perdendo-me por lá.
Procuro poetas à beira do rio, entre as searas, por detrás dos crucifixos
Em monumentos, em museus, em cidades asfaltadas ou vilas e aldeias
Apenas com uma taberna, por entre serras e planuras,
Em grutas, em copas de árvores, em mistérios e ministérios
Mas em todos os lugares que procurei, não os encontrei.
Resta-me procurar entre os poetas mortos e percorrendo jazigos
Encontro aquilo que persigo, poetas consistentes, poetas sorridentes
Poetas urgentes. Foi o tempo que os tornou poeta? Foi a morte?
Foi a saudade? Foi a poesia que os remendou? Não!
Foram apenas lágrimas, sensibilidade, olhares e rumores de causas
Que em cristal se sedimentaram e em luz se converteram. Uma faísca
Um vislumbre. Todo o resto é ciúme. E sento-me a pensar…
Ser poeta é cavalgar? É ver o Mundo com olhos diferentes?
É gostar de ser gente, mas também espaço, liberdade e essência?
Pode-se ser poeta, não gostando de poesia? Que é isso de ser poeta
E escrever… frases, palavras, fragmentos de uma elipse do olhar?
Ser poeta é epitáfio, espuma, nevoeiro, maré, alvorada
Ou noite cerrada. Poeta vivo é estilhaço. Morto é granada.
Poeta não é profissão. São os outros, que o reconhecem, eu…
Não!
Veio a mosca
E pôs o pé.
Veio o pássaro
E pôs a pata.
Depois o cão
O seu dente
O urso
A garra
O dinossauro
A perna de traz
Veio o homem
E construiu
Por cima
Um centro comercial.
Rio, que vem do sul, correndo para norte
Mar subterrâneo em direcção oposta.
Vento, rajada, geada, nortada.
Pássaro do deserto, beduíno com fome.
Coruja, canibal, acidente. Carnaval.
Toda a guerra se alimenta de mortos
Toda a paz se constrói sobre os cadáveres
Os meus links